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Conto de Natal: O (meu) sentido do Natal

Apesar da distância que o separava da Terra, sentia sempre um arrepio na alma quando olhava para o doloroso resultado da criação. Tinham sido seis dias de árduo trabalho. Seis dias divinos que equivaliam a alguns milhares de anos no calendário humano.

Durante esses seis dias, Deus convocara todas as forças do Universo, visíveis e invisíveis, e pedira-lhes que O ajudassem a conceber um novo espaço, onde o equilíbrio da existência fosse garantido pela diversidade. Depois, solicitara-lhes que depositassem a sua essência dentro de um enorme pote de barro acabado de moldar. Estando o pote quase cheio, colocou-o dentro de um vulcão na iminência de explodir e saltou para dentro dele: o Criador fundia-se, assim, com a sua nova criação. Logo após, baptizou essa sua nova forma de se revelar com o nome de Homem.

Ao dar tudo o que possuía à sua nova obra, Deus queria que o Homem usufruísse do maior dos bens: a possibilidade de ser livre. Infelizmente, com o decorrer dos anos, acabou por constatar que o Homem tinha uma grande dificuldade em conseguir compreender todos os dons que lhe tinham sido confiados. A ganância, a corrupção e a maldade quase apagaram da sua memória o verdadeiro sentido da existência. Deus sentiu-se triste e muito revoltado.

Naquele dia, quando decidiu subir ao ponto mais alto do seu reino para contemplar o mundo dos Homens, o Criador sentia-se mais desiludido do que nunca:

“ – Como é que o Homem, concebido à Minha imagem e semelhança, tinha resultado nisto?”

Naquele dia, Deus decidira convocar, pela segunda vez desde o princípio dos tempos, todas as forças visíveis e invisíveis do Universo. À medida que essas forças foram chegando ao infinito celestial, a inquietação invadiu aquele espaço: afinal, qual a razão que justificava a sua vinda até ao patamar mais sublime da existência? Foi precisamente esta questão que a Poesia, a Música e a Pintura ousaram dirigir ao Criador:

“- Todos nós respondemos rapidamente ao Teu apelo. Mas, afinal, qual é o objectivo da nossa presença aqui?”

Deus olhou à sua volta e viu que, de facto, todos tinham correspondido ao seu chamamento. Depois, enquanto fitava o infinito, inundou-o uma sensação de plenitude, como já há muito não experimentava. Finalmente, quando se conseguiu recompor de toda aquela emoção, a sua voz fez-se ecoar:

“ – Chamei-vos, pois só vós me podereis ajudar.”
“ – Mas, Senhor! Como poderemos nós ajudar-Te?” – indagou a Pintura.
“ – Ajudar-Te? Como é isso possível?” – reforçou a Poesia.
“ – Pintura, Poesia, Música… a expressão mais plena da liberdade que alguma vez eu pude conceber. Por que razão não ajudais o Homem a olhar para dentro dele?…”
“ – O Homem deixou de saber interpretar os sinais do Mundo. Vive fechado a olhar para o umbigo, não acredita naquilo que sente, dá apenas valor ao que chama de explicações científicas. O Homem deixou de saber ler as mensagens que Tu próprio lhe envias pelas estrelas. Esta é que é a verdade nua e crua” – respondeu a Poesia.
“ – Como te admiro, Poesia! Como admiro essa tua honestidade. Por mais que me esforce, não entendo como é que a minha criação mais especial se tornou nisto! Apetece-me destruir tudo.”
“ – Já O fizeste antes e nada se alterou, lembras-Te? Com o Dilúvio, pensavas ter conseguido eliminar toda a maldade humana da Terra, mas a verdade é que nada mudou.” – avançou a Música.
“ – Ah, Música! Caminho para a Eternidade… Estás correcta. O meu desespero é tão grande que já nem consigo pensar.”
“ – Pensar?! Pareces mesmo o Homem a exprimir-se. Deixa também falar o teu lado mais sublime, aquele que não podes resumir em teorias ou equações. Acredita no que sentes.” – disse a Poesia.

“ – Bem-haja, pela vossa verdade. Mas Eu, sozinho, não consigo encontrar uma forma de mostrar ao Homem o verdadeiro caminho. Ajudai-me, por favor.”
“ – Normalmente, os últimos pensamentos do Homem estão sempre reservados para quem mais o amou. Por favor, Deus, mostra aos Homens o imenso amor que te levou a criá-los.”
“ – Mas como poderei Eu fazer isso, Poesia? Eu que lhes dei o privilégio de habitarem no paraíso da Terra! Como?”
“ – Envia-lhes o que de mais precioso possuis. Envia-lhes o Teu único filho para os salvar.” – suplicou a Música.
“ – Jamais! Como me podes pedir isso?! Se alguém tem de ser sacrificado que seja Eu.”
“ – Contradizes-Te. Sabes que só a maior prova de amor os poderá salvar e, ainda assim, recusas-Te a enviar-lhes o Teu filho. A Tua vida de nada vale, quando comparada com o amor que tens pelo Teu filho – todos os pais sabem isso. Apenas esse amor os poderá emocionar e só essa emoção os poderá ajudar a encontrar o verdadeiro sentido da existência.” – retorquiu a Poesia, já a chorar.

“ – Como posso Eu enviar o meu próprio filho para o meio daqueles…?” – vociferou Deus.
“ – Só Tu poderás tomar essa decisão.” – reafirmou a Poesia, enquanto se dirigia para o vazio celestial. E à medida que se afastava foi ouvindo o eco, cada vez mais perturbador, das suas palavras finais: “– Na vida, nada se soma nem subtrai; quando a obra nasce, já tudo lá vai…”

A parte final desta narração já todos a conhecemos. Cristo fez-se Homem: veio, de mãos vazias, enfrentar um tempo onde as armas e a força ditavam as verdades imperiais. Pagou com a vida essa ousadia e Deus sentiu na alma a dor de perder um filho, crucificado pela maldade que nos habita.

Agora que o Natal se aproxima vertiginosamente, dou por mim aqui perdido, a meio da noite, embrenhado no mais profundo dos silêncios, a tentar libertar um simples conto. Caído sobre o infinito do desocupado, luto com as palavras, na triste ilusão de mover com roldanas o que só obedece ao coração. Talvez o faça, tão só, para tentar ainda lavar a alma e acolher depois nos braços o Menino que, mais uma vez, está para nascer; um Menino que todos os dias voltamos a deixar morrer, mesmo nas barbas da nossa frágil existência…

Renato Nunes

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