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Conto: Sol da Liberdade

Hoje sentia-se particularmente mais fraca e as pernas tremiam-lhe quando os paus que carregava riscavam as paredes por onde vagueava.

Era Outubro e as primeiras chuvas espreitavam bem lá do alto. Maria olhava para o céu, calculava o tempo que ainda lhe restava e acelerava o passo. Aquele maldito molho de lenha enxuta mal a deixava respirar.

Maria, a Forneira, como todos a conheciam por aquelas bandas das Beiras, tinha pouco mais de vinte anos e desde que se lembra sempre vivera assim. Órfã de nascença da mãe, mal tivera tempo para conhecer o pai: pouco depois de ter concluído o Exame da quarta classe, chegou-lhe a notícia da morte do progenitor, num maldito fogo que queimou quase toda a serração. Hoje, como ontem, para sobreviver, Maria cozia pão para a aldeia. Vai daí, todos a chamavam Maria, a Forneira; e não havia expressão de maior solidão.

Enquanto aluna, Maria sempre se distinguira dos demais. Lá na aldeia, onde os próprios rostos espelham o congelamento do tempo, ninguém sabia o que significava ser pobre, pois também ninguém conhecia o sabor da riqueza. Pela manhã, quando os meninos chegavam à Escola com as roupas esfarrapadas e os pés feridos pelas pedras da calçada todos pensavam tratar-se de uma situação normal. E todos percebiam muito bem o som que fica no estômago depois de semanas a enganar a fome.

Naquelas remotas fragas perdidas da memória dos próprios deuses, ninguém estranhava a cor da miséria. Ninguém, à excepção da Dona Isaura, professora primária que, apesar das várias décadas no magistério, nunca se conformara. Ao fim-de- -semana, quando a Escola se fechava no silêncio do desocupado, abria as portas da própria casa para abrigar aquelas pobres almas do diabo, que mais não fosse para lhes dar uma côdea de pão ou um copo de leite quente. Em troca – convencia sempre os pais e todos os meninos que ali havia mesmo uma troca – pedia-lhes que fossem buscar cântaros de água: de manhã, à tarde e à noite. Depois, quando os meninos e as meninas, com a rodilha na cabeça, chegavam à cozinha com a água, agradecia-lhes e ia despejá-la, para que lá em casa houvesse sempre motivo que justificasse o trabalho dos mais novos. Passaram assim tantas décadas e nunca ninguém se perguntou sobre o que fazia, afinal, Dona Isaura a tanta água que os seus alunos iam buscar à Carreira!

Três meses antes do Exame Final da quarta classe, que tantas voltas provocava nos intestinos da rapaziada, as portas da casa da docente abriam-se com uma regularidade ainda maior. Quase todos os dias, depois das aulas, às vezes até perto da meia-noite, as portas escancaravam-se e era uma roda-viva que nem dava para acreditar. Uns chegavam às oito da noite, outros às dez, outros mesmo às onze… e a todos, Dona Isaura, depois de ouvir o habitual: “Dá-me licença senhora professora?”, a todos, Dona Isaura começava por perguntar se já tinham comido.

Maria nunca chegava antes das onze. Mas vinha sempre. A ofegar, de tanto correr, às vezes até parecia que o cabelo se lhe ia soltar da cabeça, pois vinha todo no ar, sempre a esvoaçar. Dona Isaura ouvia os passos daquela menina, ainda bem ao longe, e depois ficava a aguardar que o portão batesse e de imediato ecoasse pela sua alma aquela voz suave. Rígida e implacável por fora, a piedosa Mestre chorava prolongadamente por dentro quando Maria se sentava, para comer e depois estudar.

Em trinta e tal anos de ensino, com turmas de quarenta cabeças, sempre separadas pelo sexo, a Mestre nunca vira uma aluna com tais capacidades. Ditava- -lhe contas de somar, subtrair e multiplicar que para todos os outros dariam para uma semana e a pequena discípula despachava-as numa hora. Algumas, ainda a Mestre estava a ditá-las e já Maria as resolvia prontamente. A professora repreendia-a imediatamente, exigia-lhe que escrevesse, que apresentasse todos os cálculos e, depois de conseguir confirmar mentalmente a validade da resposta que a discípula lhe dera, ficava a matutar como conseguiria o raio da miúda fazer contas que ela própria…

Maria nunca tivera um livro em casa. Um sábado, bem pela manhã, Dona Isaura foi à livraria central do concelho e comprou de uma assentada três volumosas antologias de contos, uma resma de folhas, uma caneta de tinta permanente e um tinteiro. Mais tarde, já em casa, aguardou ansiosamente a chegada de todos os seus meninos e, em especial, da melhor aluna que algum dia lhe havia passado pelas mãos. Estava mesmo decidida a fazer daquela menina o que todos os outros nunca poderiam ser.

Nesse mesmo dia, todos chegaram às explicações suplementares como depois partiram; de mansinho. Já passava da meia-noite quando Maria se preparava para sair, após uma hora de intenso e exigente estudo. Então, num raro gesto de afecto transparente aos olhos, a velha Mestre da escola epicurista puxou a menina para os seus braços, como se fosse a filha que nunca gerou, e num tom doce disse-lhe:

– Hoje fui à sede do concelho, onde daqui a dois meses irás fazer Exame, e comprei-te uma prenda. – Maria olhava embevecida o rosto daquela pobre mulher. Na verdade, não sabia o que era uma prenda e tão-só conhecia o sabor de uma mão de mãe entrelaçada na sua.

– Tens aqui três livros, que reúnem vários contos de alguns dos melhores escritores do mundo. Comprei-te papel, uma caneta e tinta. A melhor forma que tens para agradecer-me é ler todos os livros, uma e outra vez. E depois escreveres, escreveres e vires a correr mostrar-me. Prometes? Prometes?

Maria embalou nas mãos aquela inesperada oferenda dos deuses e depois de muito agradecer saiu a correr. Já pela calçada, as lágrimas tombaram-lhe, como uma torrente interminável. Apenas quando chegou a casa e os olhos lhe caíram na lombada daqueles três tesouros é que a alma se tranquilizou e pôde enfim deixar de soluçar.

Nessa noite, logo pela madrugada, como já era habitual, o pai chamou-a para descer. Precisava que fosse buscar o molho de lenha às matas, para mais logo fazer a comida e cozer o pão no forno. Todos os dias, de manhã e à noite, a menina saía para arranjar madeira seca.

Maria, a Forneira, desceu, despediu-se do pai com um beijo na testa, viu-lhe as mãos queimadas pelo frio da serra e a barba cada vez mais cerrada pela cor da neve e correu para a lenha. Em breve, quando ainda o sol mal se espreguiçava lá ao fundo já Maria subia a rua do Cimo do Povo, com um grande molho de lenha na cabeça, tão grande que quem a avistasse à distância até poderia pensar que o molho avançava por magia.

Quando chegou a casa, foi arrumar o fruto da sua colheita na floresta, varreu o chão de terra e lançou uns canuchos (os citadinos insistem em chamar-lhe palha de milho…) ao burro e às duas cabras que estavam na loja, mesmo por baixo do seu quarto.

Depois, foi a correr ao quarto, pegou num monte de folhas e saiu, novamente a voar. Meia hora depois e Maria estava a pedir licença para entrar no salão nobre da Escola, a tão desejada sala da quarta classe. Quando se sentou, as pernas tremiam-lhe de tanta alegria. Naquela menina, o cansaço não entrava e nem mesmo a fome a podia impedir de sorrir.

Chegou a hora do intervalo e Maria ficou, como era habitual, no seu lugar. Quando os outros partiam para brincar, Maria continuava a ler, a escrever e a contar. Nunca ninguém a ensinara a brincar. Depois, a Mestre aproximou-se e a menina estendeu-lhe um conjunto de folhas inundadas por letras cuidadosamente arredondadas. Incrédula, a velha professora exclamou:

– Não me digas que passaste a noite a ler e a escrever? Mas não saíste cedo para ir buscar lenha?

– Sim, saí. – Disse a pequenina, com medo de ter cometido algum erro grave que enervasse a sua professora.
– Como conseguiste tu ler durante a noite se não tens luz em casa?
– Acendia carqueja seca e a luz dava-me para ler uma página. Depois, imaginava o que ia escrever e quando voltava a incendiar a carqueja era só escrever, muito, muito rapidamente…
– E não te deu o sono, minha princesa? – Retorquiu a Mestre, quase a chorar.
– Sim, minha senhora. Mas eu levei uma bacia com água fria para junto de mim e, quando me dava vontade de dormir, colocava os pés lá dentro e assim as pestanas ficavam sempre abertas. A minha senhora não me leva a mal, pois não? É que eu queria mesmo ler tudo e escrever; escrever muito…

A pobre professora trincava a língua o mais duramente que conseguia. Tantos anos a aturar rostos travessos que mal sabiam ler e escrever e, no final de carreira, os seus conselhos de uma vida reencarnavam ali mesmo à sua frente no rosto de uma moçoila nascida no meio das fragas; o verbo fizera-se sangue, a escassos metros da sua presença. Como era possível que a filha do tio Zé Arnaldo, um desgraçado de um serralheiro analfabeto, conseguisse ascender a um tal patamar do conhecimento? Como era aquilo possível? Que desígnios teriam os deuses para aquela menina?

Naquele dia, quando as outras catraias entraram na sala, a Mestre abandonara o leme, sentara-se do outro lado e pedira à discípula que ensinasse às suas colegas as regras da gramática que ela própria há tantos meses se esforçava, em vão, para ensinar. Ao fim de uma hora, ficou extasiada com a simplicidade daquele génio (como nos esquecemos da dificuldade da simplicidade…). Uma hora depois e já todas as meninas papagueavam os pronomes e os complementos como se fossem a oração mais natural das suas próprias vidas.

Menos de dois meses depois, Dona Isaura levou todas as suas meninas à sede de concelho. No final, todas passaram no Exame, mas só Maria ficou distinta. Fora da sala, as outras gaivotas tinham as mães a aguardá-las para um abraço e a todas reconfortava a ideia de que, chegadas à aldeia, haveria pelo menos um pequeno pão para celebrar um dos momentos mais importantes na vida da comunidade. À saída da sala, apenas Maria estava só, pois àquela hora o seu pai trabalhava e, na verdade, não tinha mais ninguém de família que pudesse esperá-la.

Aquele foi o último ano que Dona Isaura acompanhou os seus alunos a Exame. Pouco depois reformou-se e acabou por morrer sem conseguir que Maria continuasse a estudar. Bem tentou demover o velho serralheiro dizendo-lhe, uma e outra vez, que, ao longo de toda a sua vida, nunca vira nada igual, que na sede de concelho todos os examinadores ficaram estupefactos com o conhecimento daquela menina, mas nada nem ninguém poderia levar aquele homem a compreender que uma mulher também podia estudar e fazer outra coisa diferente daquela que a sua mãe, a sua avó e a sua bisavó toda a vida haviam feito. Nada nem ninguém poderiam fazê-lo. Ainda era cedo, demasiado cedo. E ninguém acelera o que o destino trava, antes de os deuses o entenderem.

Ainda Maria ouvia na sua cabeça o toque do velho sino da Torre a anunciar que os filhos daquelas fragas haviam conseguido aprovação na terra onde até mesmo muitos fidalgos fracassavam, quando soube que a vetusta serração, junto ao cemitério da aldeia, estava a arder. Nesse mesmo dia, vieram dizer-lhe que o seu pai tinha morrido. E Maria, sentindo-se completamente só no mundo, chorou.

Decorria o cortejo fúnebre, Maria já chorava sem lágrimas, e logo começaram as investidas da Madressilva Pérola, reputada casamenteira lá do sítio. Falou-lhe da sua condição de mulher, murmurou-lhe que havia um carpinteiro, filho de uma tal Dona Etelvina, possuidora de algumas terras e várias cabeças de gado. Apontou-lhe a sua condição de profunda solidão e jurou-lhe que aquele matrimónio seria a sua única salvação.

Na verdade, no princípio, Maria nem sequer imaginava aquele verbo – casar. As palavras da carpideira casamenteira entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe por outro a duas mil e tantas léguas à hora. Casar? Não! Aquilo ainda não era para ela. E reconfortava nos braços os três livros que a sua saudosa professora um dia lhe oferecera, para talvez se convencer de que em breve chegaria o seu próprio príncipe encantado.

Mas o tempo consome tantas ilusões. E a fome e o frio podem tanto, tanto! Meio ano depois de perder o pai, quando nunca tinha conhecido a própria mãe, Maria começou a vacilar e, perante a insistência do abutre casamenteiro, anuiu. Que viesse o casamento, ou lá o que isso fosse, pois não existiria pior vida do que aquela, pensava ela, dia após dia. (E ainda há quem diga que as palavras significam sempre o mesmo ao longo da vida…).

Casou-se com David, o carpinteiro, que acabara de herdar a casa da mãe, um rebanho com cem cabeças e umas quantas parcelas de terra, no Vale Pinhoso, ermo localizado a cerca de duas horas de caminho do centro da aldeia. Conheceu-o no dia da cerimónia. Ela acabara de completar doze anos e ele faria vinte, uma semana depois.

A boda foi parca, como não poderia deixar de ser. Arranjaram-lhe um vestido emprestado e uns sapatos alugados. Os padrinhos de David, o carpinteiro, ofereceram a loja da casa e montaram lá uma mesa com uns comes e bebes. Reza a história que depois da cerimónia religiosa, na Igreja Matriz, todos marcharam em romaria para o Jardim, onde tiraram algumas fotografias, que até hoje ninguém parece saber onde param.

Terminada a festa, foram passar a noite no que restava das paredes que pertenceram à mãe de David, o carpinteiro. Ela era uma criança e ele, já um rapaz espigadote, e bem sabido da vida, pelas vezes que o padrinho o levara à casa das meninas, em Viseu, a partir do momento em que completara dezoito anos.

Maria era uma criança. Mal sabia tratar da casa. Nunca ninguém verdadeiramente lhe ensinara a cozinhar, a bordar, a limpar ou muito menos a ser esposa. Durante toda a vida, vivera sozinha com o pai, cada um na sua cama, cada um com a sua vida e, agora, de um momento para o outro, Maria via-se a dormir na cama com um homem que mal conhecia e cujo odor lhe dava vontade de fugir. À noite, dia após dia, David servia-se e depois Maria levantava-se com vontade de vomitar. E desatava a chorar. Mês após mês foi sempre assim. – Maria, a Forneira; à medida que o tempo passava, assumidamente, não havia expressão de maior solidão.

David era forte, estava na força máxima da vida, sentia o sangue a ferver-lhe nas veias e, ao mínimo problema, não hesitava em recorrer ao punho para levar a sua ideia avante. Chegava muitas vezes a casa completamente bêbedo, barafustava pela desarrumação do lar, apontava as camisas rotas, sem botões, a mesa vazia e logo a seguir descarregava toda a sua fúria em Maria.

Quatro anos depois de o inferno ter começado, Maria começou a sentir-se estranha. O seu corpo parecia estar a mudar rapidamente e, inesperadamente, pressentia-se acompanhada, dia e noite; era como se estivesse a ser observada por si própria, a partir do interior. Quando, finalmente, percebeu que estava grávida, baixou tristemente os olhos e correu para David. A resposta decepou-a: – Se ele for meu tem de nascer dia 19 de Março. – Recomeçou a contar pelos dias e corrigiu: – Não! Se ele for meu tem de nascer dia 21 de Março. Nesse dia, ficas já a saber que vou sair logo pela manhã para a Feira do concelho e chamarei aqui a Tia Arnalda, a Parteira. Quando chegar, de mota, quero uma toalha branca na janela a anunciar o nascimento. Se não estiver lá, mato-te. – E Maria sabia que, bêbedo, ele matava mesmo.

A partir daquele momento, a vida de Maria foi um inferno ainda maior. Cada dia que passava, saía para o mato à procura de lenha para cozer o pão e pelo caminho rezava a Deus e a todos os santos, implorando que o filho nascesse no dia que o seu marido tanto queria. Prometia tudo o que podia e não podia só para que aquele nascimento não se entrelaçasse a uma tragédia. E depois, deixava tudo nas mãos do Divino Espírito Santo.

Chegou o dia 21 de Março. Chovia como se fosse Inverno quando David, o carpinteiro, saiu com a mota, deixando a porta entreaberta, para receber a Parteira. Lá dentro, na cama, Maria continuava a rezar. Até que ao fim do terceiro Pai Nosso, não se sabe se por milagre se por pura coincidência, nasceu mesmo um menino. E a parteira, logo depois de cortar o cordão umbilical, apressou-se a colocar uma toalha branca no parapeito da janela. Lá na aldeia todos conheciam bem o feitio do homem da casa…

Quando David chegou, ficou radiante. Deu um beijo a Maria (talvez o primeiro que alguma vez lhe havia dado) e foi a casa do Zé do Venâncio comprar-lhe uma galinha poedeira e a melhor parte do porco que ele mesmo ajudara a matar no dia anterior. Já em casa, pediu que lhe fizessem uma canja para a mulher e que lhe preparassem uma perna de porco assada na brasa. Naquela noite, Maria, uma criança com outra criança nos braços, sentiu o calor de um lar e sonhou dar a seu marido um homem que o ajudasse a ver-se ao espelho todos os dias pela manhã; e talvez isso o mudasse…

No entanto, pouco a pouco, tudo acabou por regressar à normalidade. David voltou a beber, tornou a bater em Maria, as paredes de tabique dos quartos voltaram a inundar-se de sangue e até o pequenote – chamaram-lhe António – acordava bastas vezes com o barulho dos punhos a enterrarem-se no rosto de sua mãe.

Três anos depois daquele nascimento, fomos encontrar Maria no local onde a abandonámos no preciso momento em que iniciámos esta narração: Ainda mal nascia o sol e já Maria da Conceição subia a rua, com o pescoço aninhado pela carga do molho que levava à cabeça. Hoje sentia-se particularmente mais fraca e as pernas tremiam-lhe quando os paus que carregava riscavam as paredes por onde vagueava. Teria, então, pouco mais de vinte anos.

António não evoluía. Com três anos, mal se mexia, não balbuciava, não emitia um único som perceptível aos ouvidos humanos e apenas a mãe conseguia adivinhar- -lhe as necessidades pelo intenso choro. Maria sentia-se cada vez mais fraca. A ideia de que fora do seu ventre que nascera uma criança diferente sufocava-a ao ponto de mal conseguir caminhar. Pesava-lhe mil vezes mais do que qualquer molho de paus que carregasse à cabeça.

As gentes da vizinhança, ávidas de malvadez, perguntavam amiúde pelo garoto, e quando o viam quase morto, sem reacção, viravam as costas e escondiam as caras já saciadas. Os juízos chegavam depois, no conforto dos seus próprios lares. E o lume espalhava-se como pólvora: ­– o filho do carpinteiro, do David, é um aleijadinho. É deficiente.

Mais tarde, quando António atingiu a idade de ir para a Escola, a professora Henriqueta veio inspeccioná-lo e confirmou: – A lei de Santa Comba é bem clara: os deficientes não precisam ir à Escola.

Em casa, a notícia que confirmava a deficiência caíra que nem uma bomba. Um dia, David chegou da rua completamente desorientado. Agarrou Maria por um braço, arrastou-a até ao quarto de António, que estava sentado a um canto do refúgio, e atacou-a:

– Foi para isto que andaste meses a engordar? Tu deste-me um monstro! Todos dizem que eu sou o pai do deficiente. A partir daqui, quero-o fechado em casa, com uma mordaça na boca. Nunca mais sairá à rua. Nunca mais me fará passar vergonha. O melhor era que nunca tivesse nascido. Eu mato-o se o ouvir grunhir.

Maria não respondeu. Ela própria sentia o peso da responsabilidade no ventre. E noite após noite, muito antes daquele monólogo, pressentira o problema do rapaz e perguntara-se, vezes sem conta, que mal seria o seu para dar à luz aquela criança. E olhando António fixamente nos olhos, vendo-o imóvel e inseguro nas suas mantas, Maria odiou profundamente aquele ser que lhe trouxera ainda mais sofrimento. Revoltou-se. Rejeitou-o. Rejeitou-se. E muito tempo depois sepultou-o por dentro. Ironia das ironias, ou não, foi preciso fazer o luto da morte de uma criança normal, ainda por cima que nunca fora pedida aos céus, para depois saber aceitar aquele menino tão diferente. Quando isso aconteceu, Maria jurou cuidar daquele rapaz até ao fim da vida.

António teria talvez seis anos quando viu, pela última vez, a luz do sol. A partir desse momento, Maria passou a despender todo o tempo livre que tinha para cuidar do seu menino, eternamente enclausurado no quarto para ficar protegido; ou talvez para iludir os que o rodeavam. Passaram-se anos e anos e António nunca conseguiu falar. Maria tentou vezes sem conta ensiná-lo a ler, contar e escrever, mas ele nunca aprendeu. Ainda assim, o tempo ajudou-os a ler nos olhos o que não conseguiam dizer em palavras ou números, e isso bastava-lhes. Maria pedia-lhe que ficasse em silêncio, que nunca fizesse qualquer espécie de som quando o pai estivesse em casa. E António olhava-a nos olhos e permanecia enternecedoramente silenciado.

A partir do dia em que David, o carpinteiro, soube que o filho era mesmo deficiente nunca mais quis vê-lo. Vociferou o mais alto que conseguia, por toda a vizinhança e arredores, que o seu filho morrera, que o enterrara no quintal. Na aldeia, todos conheciam o feitio do carpinteiro, mas enterrar o próprio filho no quintal? No início, muitos duvidaram daquela mensagem, sempre dada em tom telegráfico, como era hábito do homem das madeiras, mas, à medida que os anos foram passando, todos se convenceram que o deficiente, como era conhecido, acabara mesmo por falecer.

Muitos anos efectivamente se passaram. António nunca mais saiu do quarto. Quase cegou, quase perdeu a audição e com tanto medo de fazer barulho deixou de fazer qualquer ruído voluntário. A seu lado, Maria, a mãe, nunca o abandonou. Quando estavam juntos ele limitava-se a agarrar-lhe a mão. Nunca conhecera outra alegria. As paredes daquele quarto eram o seu mundo.

Foi nesse mesmo quarto que António ouviu da boca de sua mãe que David, seu pai, tinha morrido. E foi no quarto que passados muitos anos, tantos que eu nem sequer consigo precisar, Maria entrou para dizer ao filho que, lá longe, talvez em Lisboa, tinham feito uma “Revolução dos Cravos” também para que os meninos especiais nunca mais tivessem de passar a vida inteira escondidos do mundo num quarto escuro ou a vaguearem como cães das ruas.

António não sabia o que era uma revolução, nem o que eram cravos, nem talvez compreendesse uma só das palavras que a sua mãe, já tão precocemente velhinha, lhe dizia. E, por isso, estranhou quando Maria da Conceição, a Forneira, o arrastou lá para fora do refúgio, depois para a sala e depois, tantos, tantos anos depois, para a rua.

Lá fora era Primavera. Com a luz do dia a bater-lhe na face, António emitiu um som de dor. Depois, a mãe abraçou-o e lentamente ajudou-o a abrir o que ainda lhe restava dos olhos. Por fim, apontando para o céu, gritou, com todas as forças que tinha:

– Filho! Filho! Olha; é o sol! – E António, que já não se lembrava de ver o sol, olhou para cima, viu aquela bola de fogo e sorriu. Foi o primeiro sorriso que algum dia alguém lhe viu.

Na rua, os mais idosos que passavam, baixavam a cara e silenciosamente choravam. Todos eles sentiam que existem feridas que nunca se fecham; são portas que ainda nos humanizam…

(Dedicado aos atletas paralímpicos e a todas as pessoas com alguma “deficiência”, que todos os dias nos mostram que quase tudo é possível).

Renato Nunes

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