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25 de Abril: a importância da memória histórica

A tendência natural dos Homens é o esquecimento. Basta pensar na nossa vida para nos apercebermos da fragilidade da memória: ao longo dos anos, muitos episódios vão ficando enredados por um denso e confuso nevoeiro, alguns tornam-se mesmo irrecuperáveis, enquanto outros vão sendo reconstruídos e, por consequência, reescritos. Ora, de algum modo, o historiador luta contra essa necessidade intrínseca, pois a sua tarefa também é ajudar as sociedades a recordar aquilo que tenderiam rapidamente a esquecer.

Ao longo de aproximadamente 48 anos, Portugal viveu amordaçado pela censura (prévia e repressiva). Os jornais, as revistas, os livros, os panfletos, a rádio, os espectáculos, o cinema, o teatro, as artes plásticas, o ensino, a música e, desde 1957, a televisão eram poderosamente vigiados pelo “lápis azul”, tendo em vista a sua transformação em instrumentos de propaganda e enquadramento ideológico. Pretendia-se, assim, publicitar a imagem de um país perfeito, onde não ocorriam suicídios, onde não havia fome, pobreza, crimes ou, por exemplo, prostituição, de modo a que os alicerces do Estado Novo, institucionalizado em 1933, não fossem colocados em causa. Como dizia Salazar, “aquilo de que não se fala, não existe”.

A conhecida e irónica frase: “Se queres saber o que se passa em Portugal, compra o Le Monde”, acaba, na verdade, por traduzir o que anteriormente referimos. Perante os vários mecanismos censórios e repressivos utilizados pelo Estado Novo, revelava-se muito difícil a situação de todos aqueles que escreviam. A pergunta:

“ – Será que os censores vão deixar passar isto?” – estava omnipresente na mente de quem redigia. No caso dos jornalistas, então, a situação era verdadeiramente dramática, pois a obrigação de apresentar provas à censura prévia implicava um esforço tremendo. Por vezes, poucas horas antes de o jornal ser colocado à disposição do público, caía na redacção a “bomba” de que determinado artigo teria de ser expurgado de algumas passagens ou, pura e simplesmente, eliminado. Além da evidente frustração dos jornalistas, isso representava um acréscimo significativo das despesas, pois todos os exemplares teriam de ser novamente impressos. Saliente-se que os jornalistas estavam impedidos de deixar qualquer indicação que levasse o leitor a vislumbrar que determinado artigo tinha sido censurado; por isso, eram proibidos os espaços em branco.

A utilização de uma linguagem codificada era uma das estratégias utilizadas pelos oposicionistas para tentarem publicar aquilo que não lhes era permitido escrever de um modo mais directo, mas a verdade é que os censores também estiveram particularmente atentos a essa possibilidade e, no caso de terem dúvidas, a recomendação era sempre para cortar. Por exemplo, no dia 26 de Julho de 1972, um dos censores deu a seguinte indicação para um importante diário nacional: “Proibido dizer que no Rossio soltaram um animal com um barrete de almirante, pelo que houve cargas de polícia e prisões”. Na verdade, o artigo analisado procurava criticar a recente reeleição de Américo Tomás para Presidente da República. Recorde-se que Américo Tomás, que ingressou na Marinha em 1914 (daí o “barrete de almirante”), tinha sido “eleito” para aquele cargo em 1958, quando a actuação da máquina administrativa e repressiva do regime lhe permitiu manipular o resultado das eleições e, desse modo, afastar o general Humberto Delgado, que viria mesmo a ser assassinado pela PIDE em 1965. Foi a primeira e a última vez que Américo Tomás foi “eleito” por sufrágio directo, pois, quer em 1965, quer em 1972, ele passou a ser escolhido por um colégio eleitoral restrito, constituído pelo pessoal político afecto ao Estado Novo.

Como é evidente, os jornais que não acatassem as recomendações da Direcção-Geral de Censura ou reincidissem no “erro” poderiam ser multados ou penalizados de outras formas possíveis, de modo a forçá-los à falência ou, em última instância, podia mesmo ser decretado o seu encerramento.

Por outro lado, os livros que fossem considerados subversivos e que, por terem escapado às malhas da censura prévia, se encontrassem em circulação no mercado nacional eram apreendidos pela polícia política, os seus autores poderiam ser presos e as outras pessoas ligadas, directa ou indirectamente, à sua impressão ou comercialização também poderiam vir a ser duramente penalizadas. É importante recordar que as obras apreendidas chegaram muitas vezes a ser destruídas, numa espécie de auto-de-fé, como bem o comprovam os autos de inutilização que encontrámos nos arquivos da censura existentes na Torre do Tombo.

Mas a acção da censura não recaía apenas sobre a obra, pois, por vezes, os meios de comunicação social eram impedidos de mencionar o nome de alguns escritores, de modo a que estes fossem condenados a uma espécie de morte civil. A esse propósito, ficam aqui registados alguns exemplos, ditados pelos censores aos redactores dos jornais:

“– 24 de Agosto de 1968 – Lembramos mais uma vez que nenhuma referência pode sair sobre o livro de D. Hélder da Câmara. É TUDO PARA CORTAR.” (Cf. César Príncipe, Os Segredos da Censura, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 3.ª edição, 1979, p. 34).

“– 1965 – Luiz Francisco Rebello, Urbano Tavares Rodrigues, Sofia de Mello Breyner Andresen, Francisco de Sousa Tavares, Mário Sacramento, Fausto Lopo de Carvalho, José-Augusto França, Jorge Reis, Natália Correia, Manuel Cardoso Mendes Atanásio, Alexandre Pinheiro Torres, Augusto Abelaira, Fernando Botelho, Manuel da Fonseca e Jacinto do Prado Coelho. Estes nomes são cortados. Estes escritores morreram!” (Cf. Vítimas de Salazar, ESTADO NOVO E VIOLÊNCIA POLÍTICA, Coordenação de João Madeira, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2.ª edição, 2007, p. 55).

35 anos depois da “Revolução dos Cravos”, penso ser cada vez mais importante fazer passar a mensagem que, para compreender o que foi realmente a ditadura portuguesa, é necessário descer aos arquivos e contactar directamente com as fontes que os funcionários do regime não conseguiram destruir, no calor da insurreição. São esses documentos que nos permitem encontrar o Estado Novo sem maquilhagens, pois é através deles que conseguimos surpreender o modo de actuação da poderosa máquina que sustentava o regime, nomeadamente no que diz respeito à polícia política e à censura. Só assim, no meu entender, estaremos verdadeiramente habilitados para compreender que, parafraseando Kenneth Maxwell: “Portugal é uma democracia pela qual se lutou, mais conquistada que negociada”.

35 anos depois, é importante recordar que, durante aproximadamente 48 anos, Portugal viveu asfixiado por um poderoso aparelho censório e repressivo que perseguia, torturava e, em último caso, matava todos os espíritos liberais que recusavam acomodar-se às ideias vigentes. É fundamental recordar que, e só a título de exemplo, entre os anos de 1936 e 1939 foram efectuadas 9575 prisões políticas; entre 1940 e 1945 verificaram-se 4952; entre 1946 e 1948 contaram-se 1819; entre 1949 e 1951 registaram-se 1838 e no período que medeia os anos de 1952 a 1960 existiram 3740 prisões políticas. (Ver Presos políticos no regime fascista, volumes II, III, IV, V e VI, Presidência do Conselho de Ministros, Comissão do livro negro sobre o regime fascista, Mem Martins, 1.ª edição, 1982). É fundamental recordar que, quando Salazar ordenou, em 1954, o encerramento temporário do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, já ali tinham morrido 32 presos políticos e que, por exemplo, “os 340 detidos que ali estiveram deportados totalizaram, no seu conjunto, cerca de 2 mil anos de prisão”. (Cf. História de Portugal em datas, Coordenação de António Simões Rodrigues, Temas e Debates, Lisboa, 4.ª edição, 2007, p. 352).

É este combate por uma memória histórica, objectiva e rigorosa, que me leva a acreditar que, mais do que nunca, faz todo o sentido comemorar Abril; é que a memória humana é frágil e os tempos vindouros afiguram-se difíceis, talvez até como aqueles que se viveram ao longo da década de trinta do século passado, com as consequências (dramáticas) que todos conhecemos…

Renato Nunes
*Professor de História na EBI da Praia da Vitória

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