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A crise, para além da propaganda…

… a União Europeia estava a ser alvo de ataques das agências de rating (agências de notas de crédito). Nesse sentido, seriam essas investidas que estariam a motivar a crescente desvalorização de Portugal, entre outros países, na bolsa de investimentos.

No entanto, a acção concertada da União Europeia permitiu, no entender do nosso PM, iniciar um combate a este inimigo externo, de modo a modificar um cenário impossível de antecipar, há duas (ou três?) semanas atrás… Por isso, os portugueses e, de um modo geral, todos os europeus devem aceitar, com elevado sentido patriótico – pois são, alegadamente, a Nação e até a União Europeia que estão em causa – as medidas austeras adoptadas e que, entre outros exemplos, passam pelo anteriormente decretado congelamento dos salários, mas também pelo aumento do IVA, do IRS e do IRC e pela redução das despesas, no intuito de diminuir o défice para 4,6% do PIB em 2011.

Com as devidas ressalvas, confesso que, ao ouvir a entrevista do nosso PM, me veio imediatamente à memória a história da queda do império romano do ocidente. Quando procuramos as causas para a decadência desse império teremos que associá-las, em bom rigor, a questões relativas ao próprio império e não tanto a factores exógenos: a tomada de Roma, em 476, é apenas um ponto de chegada de um longo processo de desagregação interna de uma estrutura que, ao longo de séculos, tinha mantido a unidade essencial dentro de uma espantosa diversidade.

Na verdade, o bode expiatório das agências de rating, bem como a ideia de uma crise que rebentou de um momento para o outro, sem que não houvesse nada a fazer nos meses que a antecederam, pois o mercado não seria regulado por qualquer lógica, pura e simplesmente não colhem. Os motivos que, na realidade, estão na origem desta crise actual são muitíssimo mais profundos do que à partida se quer fazer crer e não estão para além das nossas fronteiras: são a consequência natural e lógica de uma cultura enraizada.

O corte drástico das despesas nos mais variados sectores da sociedade, por si só, não conseguirá inverter a tendência actualmente existente e se nada mais for feito, por exemplo, os 110 mil milhões de euros que foram “emprestados” à Grécia converter-se-ão num investimento a fundo perdido… O Fundo Monetário Europeu, por maior que seja o seu plafond, não será, por si só, suficiente para anular outros problemas, como sejam a crónica incapacidade de Portugal conseguir produzir riqueza e evitar que se continue a gastar mais do que, efectivamente, se dispõe.

A drástica contenção de despesas e o aumento da receita estatal, através do apertar do cinto aos contribuintes, não serão suficientes, a médio e longo prazo, para modificar o cenário de bancarrota iminente, podendo mesmo ter o efeito perverso de estrangular o consumo, multiplicar as falências e o desemprego e, consequentemente, acelerar uma espiral com efeitos dramáticos e de dimensão imprevisível. Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia em 2001, afirmou recentemente ao jornal Le Monde: “Et aujourd’hui, elle [Europa] veut un plan coordonné d’austérité. Si elle continue dans cette voie-là, elle court au désastre. Nous savons, depuis la Grande Dépression des années 1930, que ce n’est pas ce qu’il faut faire” (cf. Le Monde, 23 de Maio de 2010).

Ainda assim, prossegue a propaganda socrática, é impreterível não mostrar medo e avançar com um conjunto de obras faraónicas: o TGV, exemplo paradigmático, aproximará os empresários das duas capitais e os seus “vagões” permitirão agilizar os negócios. Eis um processo que parece, desde logo, enviesado à partida, pois apetece perguntar: TGV, para Portugal exportar o quê? Também Diocleciano, imperador romano a partir de 284, no intuito de recuperar o prestígio, tentou a todo o custo criar novos rituais e cerimónias e ordenou que se fizessem vestes magníficas para aqueles que o acompanhavam…

Há pouco tempo, o principal partido da oposição propôs que fosse realizado um corte “simbólico” nos salários dos políticos e o engenheiro Sócrates viu-se na iminência de aceitar o pedido, para que fosse viabilizado o seu novo draconiano projecto de contenção, sem que, no entanto, deixasse de apregoar que não concordava com este corte meramente “simbólico” e que antes havia mesmo classificado de “demagógico”. O engenheiro Sócrates, na realidade, não compreende que, nos dias que correm, os cidadãos do seu país precisam, cada vez mais, de faróis para se guiarem e que os “ataques à Democracia”, como lhes chamou, muitas vezes, são motivados por reacções compreensíveis e fundadas, face à acção dos próprios políticos… É que a actual crise, antes de ser económica, tem um fundo civilizacional, ético.

A Modernidade matou o simbólico, destruiu as utopias, substituindo-as por fórmulas tecnocratas, onde só interessa, afinal, a velha lógica neoliberal do capital e do lucro. Os arautos deste actual modelo civilizacional da Europa parecem incapazes de perceber, ou de não terem a verticalidade de o dizer, que o nosso modus vivendi, de que é exemplo paradigmático o conjunto de “necessidades inventadas” (vejam-se os nossos Centros Comerciais…), é insustentável, já a médio prazo.

O futuro da União Europeia dependerá, em grande medida, do modo como conseguirmos, ou não, ultrapassar esta crise. Estamos em pleno alto mar e recuar, nesta altura, apenas significará acelerar o colapso, refiro-me mais concretamente a uma eventual saída da moeda única.

O futuro será sempre incerto, mas resultará do que estivermos dispostos a sonhar. A União Europeia precisa de reinventar uma nova utopia que dê sentido à sua existência efectiva, com base numa maior participação dos seus cidadãos. Mas para que isso aconteça, os Estados-Membros, muito especialmente Portugal, têm de adoptar políticas de desenvolvimento cultural e de efectiva cooperação/entreajuda.

O futuro da União Europeia vai decisivamente jogar-se, não nas agências de rating internacionais, mas nas suas Escolas e demais instituições culturais. As ciências que ajudam os Homens a construir-se, enquanto seres pensantes, não podem continuar a ser, mais ou menos sub-repticiamente, eliminadas dos currículos e, além disso, é impreterível assumir uma cultura de rigor e exigência, pondo de parte a ilusória ideia de que a descoberta do conhecimento é um simples jogo, de puro prazer, sem dificuldades ou obstáculos a ultrapassar. Na Europa e muito particularmente em Portugal, os conteúdos têm de voltar a assumir um papel decisivo na avaliação dos alunos/professores e, por exemplo, deve fazer-se um sério esforço para eliminar progressivamente a burocracia que continua a multiplicar as passagens administrativas, para obter as tão perseguidas estatísticas de sucesso educativo.

Enquanto não nascerem cidadãos europeus, a União Europeia está condenada a “não existir”, para além do papel ou da moeda…

Renato Nunes

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