Na comunidade médica é consensual que, atualmente e nos próximos anos, é premente a necessidade de abraçarmos um novo desafio: o da Saúde Mental. Esta é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como “um estado de bem-estar no qual um indivíduo percebe as suas próprias habilidades, consegue lidar com os problemas do quotidiano e assim trabalhar eficazmente, contribuindo para o desenvolvimento da comunidade onde se insere”. Sendo a saúde mental um bem fundamental para a qualidade de vida e dada a sua fragilidade, uma vez que pode ser comprometida por acontecimentos que parecem simples, é legítimo afirmar que a nossa Saúde Mental pode ser um castelo de cartas num dia de vento. Vão existir sempre dificuldades: perdemos empregos, acabamos relações, temos um “pneuzinho” a mais, precisamos de um carro novo… Cada um de nós podia escrever um livro, descrevendo em 200 páginas tudo o que mudaria na sua vida. Numa realidade utópica, seríamos munidos de uma vontade inabalável que nos permitiria ultrapassar qualquer que fosse a dificuldade. Contudo, existem condicionantes na vida real que não nos permitem estar constantemente no auge da nossa “força”. A boa notícia é que nunca vão ser as dificuldades a definir-nos enquanto pessoas: o que nos define é a forma como reagimos às adversidades. É importante clarificar que nem todos conseguimos reagir com a mesma veemência às adversidades: e não há problema nenhum nisso! Nem todos conseguimos lidar com os desafios diários sem a ajuda (por mais insignificante que seja) dos pais, dos filhos, da esposa, dos vizinhos: e não há problema nenhum nisso! Nem todos conseguimos responder constantemente às exigências do quotidiano sem a ajuda de um profissional de saúde (psicólogo, médico de família, psiquiatra): e não há problema nenhum nisso!
No que respeita à Saúde Mental, quase toda a população (para não dizer toda) pensa de forma similar: “se eu tivesse um familiar, um amigo ou um colega com algum problema destes eu aperceber-me-ia”. A mais recente evidência científica prova que as perturbações da Saúde Mental são das mais silenciosas (e, por isso, extremamente perigosas) perturbações de Saúde: convivemos diariamente com pessoas que estão a enfrentar algum tipo de perturbação/dificuldade de Saúde Mental e não nos apercebemos disso. A maioria das pessoas que sofre de perturbação da Saúde Mental tarda a procurar auxílio profissional: por considerar que é uma situação transitória, desvalorizando o impacto que tem no seu dia a dia ou por considerar que se tiver acompanhamento psicológico/psiquiátrico vai ser estigmatizado e considerado “maluco”. Desmistificando, quando nos referimos a perturbações da Saúde Mental não estamos única e exclusivamente a pensar em doenças extremamente complexas e de difícil trato, como por exemplo, as doenças clássicas da Esquizofrenia ou do Transtorno Afetivo Bipolar. Existem perturbações da Saúde Mental que encerram uma particular preocupação, principalmente pelo recente aumento exponencial da sua prevalência e incidência. Falamos da Síndrome de Burnout, da perturbação depressiva e/ou de ansiedade e, mais concreta e recentemente, do Transtorno da Ansiedade Social/Fobia Social. Estudos epidemiológicos recentes mostram que uma percentagem expressiva da população mundial já experienciou pelo menos uma destas condições, sendo que se podem potenciar entre si.
“Não aguento trabalhar aqui nem mais um dia” ou “Estou muito desmotivado com o trabalho que faço” podem ser eventuais frases típicas num contexto de Síndrome de Burnout. Esta síndrome surge normalmente como resposta mal adaptativa a fatores de stress emocionais e/ou físico laborais, experienciados de forma crónica, resultando num estado de exaustão exagerada associado a um sentimento de falta de energia e ineficácia. Atinge cerca de 20% dos trabalhadores portugueses, mas estima-se que o crescimento, no contexto pandémico atual, tenha progredido exponencialmente (principalmente em classes profissionais que lidam com pessoas diariamente, nomeadamente na área da educação e da saúde). O desgaste que decorre do Burnout pode expressar-se por alterações físicas (tonturas, taquicardias, tensão muscular e alterações do sono/apetite), emocionais (apatia, desesperança ou irritabilidade) e/ou cognitivas (diminuição da concentração/atenção ou necessidade exagerada de controlo). Torna-se essencial prevenir a sobrecarga de tarefas e os objetivos profissionais desmedidos, percebendo que todos precisamos de momentos de lazer o que, em última instância, pode melhorar a própria performance laboral.
De acordo com a OMS, a perturbação depressiva é a principal causa de incapacidade no trabalho. A perturbação depressiva e a perturbação de ansiedade são duas condições que coincidem frequentemente: é possível um indivíduo apresentar-se com humor deprimido, desmotivado para realizar tarefas previamente prazerosas, apresentando alterações no padrão de sono/alimentação e, ao mesmo tempo, viver constantemente com medo e ansiedade exagerada face a um estímulo inofensivo que é interpretado como perigoso. Como funcionam como perturbações sinérgicas devem ser precocemente identificadas para que possam ser tratadas por profissionais de saúde o mais celeremente possível, visto que está comprovado que, quanto mais precoce for instituído o tratamento melhores serão os resultados terapêuticos. No atual contexto pandémico, verificou-se um padrão evolutivo curioso em que, numa fase inicial nos obrigou a confinar, aumentaram exponencialmente as perturbações depressivas e/ou de ansiedade derivadas da impossibilidade de realizarmos todas as atividades sociais que nos são essenciais. Contudo, quando a propagação da infeção por COVID19 pareceu controlada o suficiente para nos permitir retomar progressivamente a nossa vida “normal”, objetivou-se precisamente o inverso: as pessoas “esqueceram-se” de como agir em sociedade, surgindo uma acérrima nova vaga de casos de Transtorno da Ansiedade Social/Fobia Social, em que a principal dificuldade é gerir o sentimento de vergonha/humilhação caso não correspondam às expetativas dos outros, isto é, evitam as interações sociais por se sentirem permanentemente julgadas e avaliadas, podendo, em casos graves, resultar num isolamento severo e de difícil resolução.
Concluímos que a nossa Saúde Mental é muitas vezes negligenciada por nós próprios e por quem nos rodeia, o que inicia um ciclo vicioso que nos leva a protelar a procura de ajuda especializada. Devemos perceber que é tão importante irmos ao hospital quando pensamos que estamos a ter um AVC, como procurar ajuda profissional quando nos sentimos deprimidos, sem força ou constantemente ansiosos por estímulos mínimos. Procurar ajuda precoce e especializada, ao contrário da ideia enraizada socialmente, é um claro sinal de inteligência e autorrespeito. Se carregamos o nosso telemóvel quando está com pouca bateria, porque não fazermos o mesmo connosco próprios?
Autor: Hugo Lopes