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Será que existe pior prisão do mundo do que aquela que nos destrói o viver e nos condena a um existir?

Os anos correm velozmente perdendo-se na fugacidade do tempo e toda a nossa imagem corporal é naturalmente submetido a um irreversível processo de envelhecimento.

Cuidar o Idoso

Imagem vazia padrãoOs movimentos corporais são condenados a uma lentificação ensurdecedora, com a possível declaração de uma pena de imobilidade. A dependência de outrem, na realização das actividades de vida diárias, despoleta no idoso uma vertiginosa frustração desencadeadora de um sentimento de inutilidade. Subsiste nele um ascender de memórias de outros tempos, instaurando-se a tristeza constante de ver morrer aos poucos, quem um dia já foi “Herói”. Não consigo, projectando-me num futuro, negar em mim o pavor dilacerante perante a irreversível impotência para a realização de coisas simples, que me poderá aprisionar aquando do meu próprio envelhecimento. É esta impotência que se apodera velozmente do idoso que o faz exacerbar toda a situação que vive, bloqueando o seu pensamento de tal forma que o direcciona para um querer afincadamente o término da vida pela descrença que alimenta o sortilégio da sua vida! Mesmo assim, as faculdades mentais parecem ser suficientes para o processamento de informação e o percepcionar da realidade. Assiste-se a uma exteriorização deliberada de emoções, sendo estas igualmente filtradas através dos centros cognitivos do cérebro, originando um extravasamento de sentimentos.

Será que a incapacidade física e consequente dependência se constitui a pior prisão do mundo? Por mais perdido e inútil que o idoso se encontre, a relação formal entre as massas escurecidas, conseguem constituir um retrato de uma realidade concebida pelo próprio idoso! E quando o idoso se encontra numa tal degeneração cerebral que o venda completamente da realidade que vive, ausentado pela motricidade fina que lhe permita pintar qualquer realidade que seja? Quando a presença de vida se manifesta aparentemente somente pelas oscilações regulares resultantes de movimentos respiratórios…quando a presença corpórea, parece apresentar contornos mais nítidos do que o próprio viver… quando a motricidade assume um automatismo meramente estereotipado, frisado por movimentos espontâneos…quando a afecção mental impede ou anula a relação, sem realmente suprimir a sede relacional…quando o estar só significa, por vezes não constituir presença para ninguém, nem mesmo para eles próprios… Mas afinal o que sente aquele idoso num estado de sofrimento cérebroencefálico designado por alguns como meramente vegetativo, numa sideração completa pelo vazio? Será que mesmo preso a uma afasia de expressão, existe uma compreensão de palavras que aquele que cuida profere? As questões tornam-se retóricas, perante a incapacidade do ser humano em conseguir vislumbrar o misticismo e obscurantismo da mente humana… Talvez essa seja uma capacidade que nos foi parcialmente vedada…talvez nunca conseguiremos alcançar esta dimensão que como desconhecemos receamos tenebrosamente!

Por mais que acredite na existência de uma memória emocional no idoso, em que o silêncio se torna muitas vezes o mentor das mensagens proferidas e que a nossa presença junto destes seres humanos, por si só, poderá constituir um consolo para esse sofrimento mental, não consigo encarar a perda neuronal e nefastas consequências como fomentadora de um viver do idoso! Amarrado a um mundo silencioso, onde tudo perde o sentido e em que o seu único sentido é não ter sentido algum…Onde os sentimentos parecem embutidos num vazio impossível de preencher… onde o processamento de informação se torna impossível pela dissipação da mesma…onde a simples imagem de um ente querido se perde no imediatismo das lacunas cerebrais…tornando-o apenas talvez um vulto como tantos outro, numa perda absoluta da consciência do meio ambiente que um dia algo lhe disse e agora nada lhe diz, traduzida num rosto que vocifera um apelo à compreensão da sua condição humana! Afinal alguém consegue encontrar um sentido para esta vida? Vida que impede a própria poesia da vida? Os objectos e as pessoas já não são capazes de incitar no idoso uma nítida significação, o que o torna prisioneiro de si mesmo, esgotando-se irreversivelmente a essência da vida na fugacidade do tempo em consequência de uma degeneração cerebral progressiva. Será que existe maior prisão do mundo do que aquela que nos destrói o viver e nos condena a um existir até que os nossos órgãos vitais se cansem e desistam, também eles, de lutar pela vida?

Quem cuida acorrenta-se inevitavelmente àquele mundo silencioso e lúgubre, falando sabendo que nada vai ouvir… olhando sabendo que existe uma alternância de vígilia-sono e não um seguimento de olhar…mas sempre preso na ânsia de receber um sinal, contrariando a ideia estereotipada da ausência de vida não alheia a nosso olhar! Resvalam-se emoções e sentimentos de forma impiedosa ao sabor da negritude indecorosa do fado da vida…desafiando-nos no seio das nossas capacidades a uma procura da forma mais nobre e exímia do cuidar, percorrendo caminhos tenebrosos somente para dar àquela pessoa em sofrimento mental um carinho ou um afago, numa pertença voraz de um cuidar que homenageie e dignifica verdadeiramente a arte do Ser Enfermagem!

Andreia Costa
* Enfermeira

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