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O ESTADO NOVO: UM REGIME DE “BAIXA MOBILIZAÇÃO IDEOLÓGICA”? Autor: Renato Nunes

Duncan Simpson publicou recentemente, através da BookBuilders, o livro “Tenho o prazer de informar o Senhor Director…”. Cartas de Portugueses à PIDE (1958-1968). Com um total de 151 páginas, a obra encontra-se dividida em 4 capítulos: I – “A PIDE entre Memória e História”; II – “Denúncias”; III – “Petições”; IV – “Candidaturas espontâneas”.

O actual investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) licenciou-se em Estudos Europeus pela London School of Economics e doutorou-se em Estudos Portugueses e Brasileiros pelo King’s College (Londres). Para a realização do livro que motivou este artigo, baseou-se, fundamentalmente, num conjunto de fontes que integram 613 cartas de denúncia à PIDE, escritas entre 1958 e 1968, bem como 16 petições remetidas à polícia política.

Proclamando utilizar uma metodologia (supostamente) inovadora, que parte do estudo da população comum (“history from below”), Duncan Simpson procura, logo numa fase inicial do seu livro, reduzir à insignificância os estudos desenvolvidos, por vezes ao longo de décadas a fio (ia a escrever, uma vida), por historiadores de referência nacional, caso de Fernando Rosas, Irene Pimentel e Luís Reis Torgal, entre outros. Não deixa de ser sintomático que Duncan Simpson se limite a mencionar na Bibliografia e no corpo do seu texto um simples artigo de opinião do último historiador aqui mencionado, editado no jornal Público, em 2021, ignorando as suas obras fundamentais para o estudo do regime português, caso, por exemplo, do monumental e incontornável Estados Novos. Estado Novo (2 volumes). O ambicioso projecto do investigador do ICS-UL aparece identificado logo de imediato: “Renovar o campo de estudo da PIDE” (Duncan Simpson, ob. cit., p. 56).

No que diz respeito a este breve artigo, pretendo, fundamentalmente, problematizar duas teses defendidas por Duncan Simpson na sua mais recente obra: – o Estado Novo teria sido um regime de “baixa mobilização ideológica” (Duncan Simpson, ob. cit., p. 22); – o estudo de determinadas “categorias específicas de vítimas [da polícia política], como intelectuais e escritores” acaba por aumentar a dicotomia entre “opressores e perseguidos” (Duncan Simpson, ob. cit., ps. 54 e 55). Procurando sintetizar este último e outros caminhos da historiografia que tem vindo a debruçar-se sobre o Estado Novo e a polícia política, em particular, Duncan Simpson conclui mesmo de um modo particularmente incisivo: “Nenhum destes desenvolvimentos tem sido benéfico para o esforço de atingir uma compreensão mais aprofundada da complexa relação entre a PIDE e a sociedade sob o Estado Novo. Pelo contrário, ao permanecer cativa da memória, a historiografia provavelmente tornou esse objectivo mais difícil de alcançar” (Duncan Simpson, ob. cit., p. 55).

Comecemos, pois, por escrutinar a primeira tese: o Estado Novo teria sido um regime de “baixa mobilização ideológica”? Importa dizer que o polissémico conceito de ideologia é por mim entendido, grosso modo, enquanto um conjunto de representações que conduzem os indivíduos, de um modo mais ou menos consciente, a agir de determinadas maneiras, em oposição a outras (como concluiu José Madureira Pinto, o estudo teórico das ideologias não pode dissociar-se da análise de situações concretas – “Ideologias: inventário crítico dum conceito” in Análise Social, vol. XIII, 49, 1977-1.°, p. 144). Equivale isto a reconhecer que as ideologias desempenham um papel importante em tudo o que pensamos, fazemos ou omitimos, sendo fundamental interrogarmo-nos constantemente a respeito da sua real influência no discurso historiográfico que procuramos cientificamente construir e validar (ver a este respeito Luís Reis Torgal – História e Ideologia, Coimbra, Livraria Minerva, 1989, sobretudo pp. 224-228).

Ora, bastará analisar detalhadamente os manuais escolares vigentes durante o período salazarista-marcelista (no decurso do qual perdurou a política do “livro único”) e perscrutar a sua influência tremenda na memória individual daqueles que viveram esse período para desmontar o primeiro argumento de Duncan Simpson, que, curiosamente, ao analisar o número de denúncias remetidas à PIDE contra os comunistas, conclui: “a sociedade portuguesa, enquanto entidade receptora, não ficou imune à intensa propaganda anticomunista desenvolvida pelo regime” (Duncan Simpson, ob. cit., p. 86). Ou ainda, num evidente contra-senso com a suposta baixa mobilização ideológica do Estado Novo: “Pelo menos no que se assemelhava à matéria «política», na acepção lata do termo, tem também sido demonstrado empiricamente o processo de interiorização generalizada dos limites impostos pelo regime quanto à discussão dos assuntos considerados sensíveis (como, para o período em estudo, os temas da guerra colonial, da emigração clandestina, e da oposição política)” (Duncan Simpson, ob. cit., p. 130). Ou ainda quando o investigador reconhece que as denúncias remetidas à PIDE, tendo em consideração a sua amostra de estudo, “incluíam frequentemente um genuíno – embora difuso – sentido de identificação com a ditadura salazarista e as suas principais orientações ideológicas” (Duncan Simpson, ob. cit., p. 84).

O Estado Novo, enquanto regime corporativo e nacionalista, teve uma fortíssima componente ideológica, o que é facilmente testemunhável nos discursos do Presidente do Conselho e demais colaboradores, nos diversos documentos legislativos, nos organismos criados (Secretariado de Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, Mocidade Portuguesa masculina e feminina, Legião Portuguesa, Obra das Mães pela Educação Nacional…), bem como nos instrumentos produzidos pelos seus canais de propaganda (jornais, boletins, manuais, selos, rádio, teatro, filmes, cartazes, exposições, comemoração de efemérides…), mas também, entre muitos outros exemplos, ao nível da questão colonial e, em sentido mais específico, da actuação dos próprios censores, quer no âmbito das publicações periódicas, quer ao nível das publicações não periódicas (veja-se, por exemplo, a referência aos crimes de natureza ideológica, que “justificavam” a apreensão das obras e não raramente a instrução de um processo-crime ao seu autor e a severa penalização das diversas entidades envolvidas na edição). Além disso, sublinhe-se, a própria inactividade/indiferença política e cívica da maioria da população portuguesa – fundamentalmente analfabeta e com condições de vida miseráveis – não poderá ser cabalmente compreendida sem tomar em consideração essa forte componente ideológica do salazarismo/marcelismo.

Passando agora à segunda questão: fará (ou não) sentido, do ponto de vista historiográfico, estudar os processos dos escritores/intelectuais na polícia política e, por exemplo, na censura “estadonovistas”? Trata-se, importa começar por admitir, de uma matéria a respeito da qual me tenho debruçado, nas horas livres, ao longo das últimas duas décadas.

Feita esta declaração de interesses, vale a pena recordar que, para Duncan Simpson, o estudo dos processos instruídos pela polícia política (PVDE/PIDE/DGS) e, depreende-se, pela censura a escritores/intelectuais, enquanto exercício historiográfico, agrava a dicotomia entre “opressores e perseguidos”. Trata-se de um argumento que me parece difícil de sustentar do ponto de vista científico, porquanto ao estudar as (complexas) relações entre os escritores (os intelectuais, os médicos ou outras categorias socio-profissionais) e o Estado Novo estaremos, pelo contrário, a iluminar um pouco melhor as inúmeras teias (as sombras e as luzes) que fazem, afinal, parte da vida de todos os cidadãos e das próprias estruturas oficiais que ajudaram a perpetuar o regime entre 1933 e 1974.

O estudo dos processos na polícia política, que exige, sublinhe-se, um conjunto de cautelas epistemológicas, terá de ser sempre cruzado com outras fontes e trabalhos já desenvolvidos, que deverão ser lidos e criticados em função das suas circunstâncias e não simplesmente desvalorizados, mesmo por aqueles que têm a firme convicção – como é o caso de Duncan Simpson – de estar a renovar (leia-se, revolucionar) a abordagem epistemológica do assunto abordado… Por conseguinte, parece-me deveras redutor que um investigador como Duncan Simpson, que consegue editar artigos em jornais de referência e publicar obras que são disponibilizadas nos escaparates das principais livrarias nacionais, parta do pressuposto segundo o qual o estudo dos escritores/intelectuais que tiveram processos instruídos pela PVDE/PIDE/DGS seja apena direccionado pelos investigadores, de um modo mais ou menos consciente, para construir ou perpetuar a memória das vítimas (que, segundo Duncan, serão apenas uma “minoria”). Como se, afinal, recuperando a célebre personagem do inspector Javert do romance de Victor Hugo, Os Miseráveis, o mundo pudesse ser apenas visto em tons de preto e branco! Uma conclusão ainda mais surpreendente se tivermos em consideração as próprias palavras de Duncan Simpson: “a realidade é bastante mais complexa” (ob. cit., contracapa).

O estudo dos processos instruídos pela polícia política e pela censura implica, desde logo, a análise global das fontes reunidas à época pelos funcionários do regime, o que tem a clara vantagem de facilitar um maior exercício de enquadramento das mesmas na sua realidade concreta primeva. Ao contrário, por exemplo, do exercício historiográfico empreendido por Duncan Simpson: desirmanar as cartas de denúncia do seu contexto original, estudando-as, aparentemente, sem tomar em consideração a floresta na qual estão integradas, o que o leva, por exemplo, com base em escassas e ambíguas citações de fontes, a insistir na (hipótese?) de a PIDE ter funcionado de um modo regular também como mediadora de conflitos, ou seja, “um patrocionador paternalista” que poderia ajudar os trabalhadores a resolver as suas “necessidades mais urgentes (ob. cit., ps. 124 e 125)…

Assim, ao contrário do que sustenta o investigador aqui citado, considero que a análise exaustiva dos processos dos escritores na PVDE/PIDE/DGS e, acrescente-se, na censura revela-se fundamental para compreender melhor o regime salazarista/marcelista e as suas intricadas relações com os portugueses: um trabalho, de resto, que ainda se encontra numa fase embrionária. Neste enquadramento, em jeito de conclusão, aproveito para sugerir a leitura da recente obra dada à estampa pela editora Temas e Debates: Brandos Costumes. O Estado Novo, a PIDE e os Intelectuais. Coordenada pelo historiador Luís Reis Torgal, conta com textos assinados por vários investigadores, entre os quais tive o privilégio de ser integrado: “Tomás da Fonseca, patriarca das oposições republicanas, socialistas e laicas” (Luís Filipe Torgal); “Aquilino Ribeiro. A Via Sinuosa de um «intelectual desafeto»” (Renato Nunes); “A importância de se chamar Ferreira de Castro” (Luís Reis Torgal); “Miguel Torga, um escritor «desafeto», com «ideias avançadas»” (Renato Nunes); “Soeiro Pereira Gomes, «comunista intelectual e de ação»” (Renato Nunes); “Fernando Namora sob «vigilância hostil»” (Paulo Marques da Silva); “Jorge de Sena e os tentáculos da PIDE no Brasil” (Heloísa Paulo); “Natália Correia, a poeta de combate” (Vítor Neto); “Teatro e opinião pública” (Luís Reis Torgal); “O meio intelectual e académico. O caso do informador Inácio” (Paulo Marques da Silva); “Universidade, Igreja Católica e vigilância policial. Dois processos exemplares” (Luís Reis Torgal); “Casos africanos… Amílcar Cabral e Agostinho Neto” (Julião Soares Sousa).

 

 

 

Autor: Renato Nunes

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