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Pensar Abril

Reza a tradição que o chefe militar e político romano Caio Júlio César (100 a.C. a 44 a.C.) teria um dia afirmado que “há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar”. Segundo consta, falava do povo Lusitano, para alguns, a origem mais remota dos portugueses…

No ano em que se completa o centenário da implantação da República e a poucos dias de recordar a revolução de 25 de Abril de 1974, penso que vale a pena parar um pouco para reflectir. O pensamento criativo é um exercício que implica um esforço árduo, na medida em que, por vezes, chega a ser necessário desconfiar da própria memória individual. Este acto de pensar, indispensável para o sujeito adquirir voz própria e não se limitar, assim, a papaguear as teorias que foi absorvendo, exige ser treinado, à semelhança de qualquer músculo, caso contrário acaba por ir definhando. Talvez resida aqui uma das causas para esta generalizada amnésia colectiva, no que diz respeito aos nossos antepassados. Emaranhados na voragem do instante, somos incapazes de reflectir nos episódios que estão para além das nossas “couvinhas” e, por isso, se o conhecimento se restringe aos círculos de elites académicas e o ideal grego de cidadão vai desaparecendo, nada se inscreve, como diria José Gil. Ou seja, as reacções à corrupção, ao roubo… são um fogo na palha – produzem um grande alvoroço no primeiro instante, mas, logo de imediato, tudo se dissipa no silêncio dos espaços em branco.

Marc Bloch, na sua famosa obra Introdução à História, deixou-nos eternizada uma passagem à qual regresso frequentemente: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente. Já contei algures esta anedota: acompanhava eu Henri Pirenne a Estocolmo, mal chegámos, diz-me ele: «Que vamos nós ver primeiro? Parece que há uma Câmara nova. Comecemos por lá.» Depois, como se me quisesse evitar um movimento de surpresa, acrescentou: «Se eu fosse um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida.» […] Acontece, e com mais frequência do que se pensa, que se tenha exactamente de vir até ao presente para que a luz se faça”. (ob. cit., 6.ª edição, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1993, pp. 42-45).

Calcorreamos o país, de lés a lés, e visitamos os monumentos nacionais. Frequentemente, encontramos à entrada um funcionário a entregar-nos a senha, para percorrermos depois o trilho delineado na solidão dos nossos pensamentos. E enquanto isto acontece, centenas de pessoas qualificadas, ávidas de partilhar os seus conhecimentos, enchem as filas do desemprego… O mérito, o trabalho e o rigor raramente são premiados e, recorrentemente, acabam mesmo por ser atributos que funcionam como factor de penalização, num país que ainda funciona muito à base dos pequenos reinos locais.

Olhando à nossa volta, como sintetizou José Gil, Portugal continua a ser atravessado pelo Medo de Existir: “o legado do medo que nos deixou a ditadura não abrange apenas o plano político. Aliás, a diferença com o passado é que o medo continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente”. E continua o referido filósofo: “vivemos numa sociedade sem espírito crítico […] em vez do espaço público impera a televisão […] somos um país de burocratas em que o juridismo impera, em certas zonas da administração, de maneira obsessiva. Como se, para compensar a não-acção, se devesse registar a mínima palavra ou discurso em actas, relatórios, notas, pareceres […] agarramo-nos a automatismos afectivos, à tentação da corrupção (esperteza) por velhos hábitos de impunidade de classe, à inércia, ao compadrio […]”. (Portugal, Hoje: O Medo de Existir, 11.ª edição, Relógio D’Água, Lisboa, 2007, pp. 36-63). Eduardo Lourenço, outro dos mais destacados pensadores nacionais da actualidade, afirma: “Os Portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz o proclama, espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe…” (O Labirinto da Saudade, 5.ª edição, Gradiva, Lisboa, 2007, p. 78). Será aliás por acaso, reflexão da nossa responsabilidade, que uma das obras maiores da literatura portuguesa, Os Lusíadas, encerre com a palavra “inveja”?

É incontornável o peso que os 48 anos de Ditadura deixaram marcados na alma nacional; muito do que somos e também do que não nos deixaram ser permanecerá ligado ao Estado Novo. É inevitável pensar no modo como desperdiçámos as riquezas da Expansão; no pesado legado da Inquisição; na perseguição aos Judeus; nas expulsões dos Jesuítas; nas invasões francesas e na decorrente actuação dos ingleses, no início do século XIX; no modo como delapidámos os subsídios europeus, que, muitas vezes, recebemos como recompensa para destruir, lentamente, a já frágil infra-estrutura produtiva nacional… e tudo isto entre muitos, muitos outros possíveis exemplos de que a nossa História está recheada. É inevitável pensar nas palavras de Eça de Queirós e na desilusão que ficou sintetizada na fórmula da geração dos “Vencidos da Vida” para perceber que, afinal, o problema nacional é estrutural e que o mito do Sebastianismo condensa toda uma cultura que persiste há séculos.

No entanto, 36 anos depois da “Revolução dos Cravos” é importante compreender o que aconteceu (e continua a acontecer) para ser possível chegar a este ponto. O que resta, ainda, das utopias de Abril? Olhamos à nossa volta e vemos um país a ser abandonado, subjugado por uma lei neoliberal, acima de toda e qualquer ética. Poderosas redes tentaculares começam a invadir os mais variados domínios da nossa existência: o medo de contrariar é evidente e, para sobreviver, começa-se a conjugar o verbo obedecer. Nas Escolas e demais instituições, recorrendo a variados mecanismos de manipulação, como seja o pretexto da avaliação de desempenho, há uma poderosa campanha (consciente e deliberada?) para formatar/silenciar e castrar o pensamento do indivíduo. Num tempo de aparente pluralidade e globalização, o pensamento corre o sério risco de tornar-se estandardizado e, por isso, desaparecer. Cada vez mais, é urgente “pensar fora da caixa”, nas várias acepções que a expressão pode significar, até porque a lógica humana, finita, também limita…

36 anos depois, os cidadãos continuam verdadeiramente por nascer… Será que estamos condenados, pela fatalidade do destino, a sermos “um povo que nem se governa nem se deixa governar”? Deixo-vos com Miguel Torga, num tempo em que os faróis continuam a apagar-se rapidamente: “Coimbra, 1 de Março de 1990 – Liberdade. Passei a vida a cantá-la, mas sempre com a identidade no pensamento, ciente de que ela é o supremo bem do homem. Nunca podemos ser plenamente livres, mas podemos em todas as circunstâncias ser inteiramente idênticos. Só que, se o preço da liberdade é pesado, o da identidade dobra. A primeira, pode-nos ser outorgada até por decreto; a outra, é sempre da nossa inteira responsabilidade.” (Diário XVI, [Edição conjunta, 2.ª edição integral], Publicações Dom Quixote, Porto, 1999, p. 1677).

Aparentemente, nada tiramos nem deixamos nos caminhos que diariamente trilhamos, mas a verdade é que, a pouco e pouco, as pedras da calçada vão ficando desgastadas, pelo efeito da nossa passagem…

Renato Nunes

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