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Repensar as políticas educativas da Inclusão. Autor: Renato Nunes

Publicada em 2018, a obra Sentidos, de Nuno Lobo Antunes e outros autores que integram a equipa técnica do Centro de Desenvolvimento “Partners in Neuroscience” (PIN), revela-se importante para compreender o desenvolvimento humano, algumas das problemáticas associadas, bem como as múltiplas possibilidades de intervenção. Com 647 páginas, o livro toma em consideração as alterações introduzidas, em 2013, pelo DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) e foi, curiosamente, editado em 2018, ano do decreto-lei (DL) n.º 54, de 6 de Julho (ligeiramente alterado pela lei 116/2019), que introduziu alterações significativas ao nível da hoje designada “Educação Inclusiva”, diploma que, entretanto, estará a ser adaptado à realidade da Região Autónoma dos Açores, tendo em vista a sua posterior operacionalização em todas as escolas.

Numa época em que, para parafrasear o astrónomo e astrofísico Carl Sagan, o mundo parece “infestado de demónios”, os estudos científicos fazem-nos cada vez mais falta, sendo de destacar quando os mesmos se revelam de fácil entendimento, mesmo para os não especialistas. É o caso da obra Sentidos, que aborda, entre outras questões, o desenvolvimento do cérebro, as perturbações do desenvolvimento intelectual, da comunicação, linguagem e fala, do espectro do autismo, da hiperactividade e défice de atenção, da atenção, da ansiedade, da coordenação motora, bem como, apenas a título ilustrativo, as questões do luto, do divórcio e da utilização da internet ou das dificuldades de aprendizagem específicas (v.g., “dislexia”). Atendendo ao rigor conceptual dos textos, mas também ao seu sentido didáctico e ao currículo dos seus autores, atrevo-me a classificá-lo como um livro precioso, particularmente recomendado, desde logo, a todos os profissionais da Educação.

Os investigadores sustentam, logo nas páginas iniciais, a importância clara e objectiva de todos os pais procurarem ajuda especializada imediatamente quando surgirem as primeiras dúvidas, de modo a que os diagnósticos e as respectivas intervenções sejam concretizados (quando for caso disso) o mais precocemente possível, sem cair, por conseguinte, no erro comum de aguardar pela passagem dos anos e pela chegada de um suposto clique milagroso: “A formulação de um diagnóstico é parte importante do trabalho clínico. […] Essa função é importante, porque orienta quanto à causa, torna implícito o caminho terapêutico e permite prever com maior ou menor exatidão o futuro. […] Um diagnóstico não retira individualidade” (Nuno Lobo Antunes et al., Sentidos, Alfragide, Lua de Papel, 4.ª edição, 2020, p. 18). Até porque: “Por detrás de uma criança problemática, está sempre uma criança com problemas” (Nuno Lobo Antunes et al., ob. cit., p. 220). E, acrescento, só depois de conhecer a problemática se poderá intervir com eficácia. Outrossim, sem o diagnóstico claro, como poderão os pais concretizar esse processo de luto da “fantasia da criança perfeita” (Nuno Lobo Antunes et al., p. 386), cuja importância é amplamente reconhecida pela literatura científica? Estas questões afiguram-se-
-me particularmente pertinentes, pois o DL 54, logo no seu preâmbulo, afasta a “conceção de que é necessário categorizar para intervir”, o que, associado a outros aspectos ambíguos da lei, tem conduzido a que os diagnósticos sejam, por vezes, ignorados ou acabem por nem sequer ser solicitados, na medida em que se entende que eles não são necessários para o processo de selecção das medidas educativas a operacionalizar, no âmbito da abordagem multinível prevista no DL 54…

Ora, se é verdade que os diagnósticos clínicos especializados deverão ser procurados, também é importante ter presente que a intervenção sistemática e precoce é uma condição sine qua non para o sucesso de todos os alunos. Algo que o DL 54, uma vez mais, obcecado com o fim das categorizações, parece não tomar em devida consideração, porquanto exclui as crianças da Educação Pré-Escolar da mobilização de medidas de nível superior [selectivas e adicionais: cf. Perguntas Frequentes | Direção-Geral da Educação (mec.pt)]. Isto, pasme-se, pese embora o facto de o legislador insistir na necessidade de uma actuação “preventiva” e na possibilidade de qualquer medida educativa, no âmbito da abordagem multinível prevista no DL 54, ser aplicada apenas e só durante o tempo necessário… Então, não faria mais sentido investir seriamente na mobilização sistemática de recursos durante aquele que é consensualmente considerado como sendo um dos momentos cruciais no desenvolvimento de qualquer criança, ou seja, a Educação Pré-Escolar? Trata-se, importa sublinhá-lo, apenas de uma interrogação escorada, em grande parte, na minha própria experiência pedagógica segundo a qual a mobilização de medidas universais e de adaptações no processo de avaliação se revela insuficiente, em muitos casos…

Outrossim, o DL 54 defende que a intervenção prestada pelo docente de Educação Especial deverá ser concretizada privilegiando o contexto de sala de aula. Na prática, a lei ou as interpretações abusivas proporcionadas pela sua ambiguidade (?) têm, na minha opinião, contribuído para que o professor de Educação Especial seja muitas vezes confundido como sendo um professor de Apoio Educativo, ainda por cima de todas (!?) as áreas curriculares. Como se fosse possível um docente dominar conteúdos tão díspares e complexos que vão da Matemática, à História, à Geografia, à Física, à Química, ao Português…

Na maior parte das situações, atrevo-me a generalizar, a intervenção do docente de Educação Especial com a criança/jovem terá de ser concretizada em contexto individualizado ou em pequeno grupo, isto caso se almeje o verdadeiro desenvolvimento das competências específicas lacunares. Colocar o professor de Educação Especial dentro de uma sala de aula repleta de alunos e com mais outro docente, pretendendo que, entre os complexos conteúdos ministrados, o docente especializado consiga ainda promover as competências específicas necessárias a cada aluno, parece-me, na maior parte dos casos, simplesmente irrealizável ─ o exemplo das Dificuldades de Aprendizagem Específicas, como a “dislexia”, afigura-se-me particularmente paradigmático para compreender a importância de existir um sistemático trabalho de cariz mais individualizado junto da criança/jovem, nomeadamente ao nível da consciência fonológica e de outras áreas lacunares.

Já agora, importa, com toda a humildade, reconhecer que é necessária uma vida de trabalho e estudo para se conseguir formar um Professor, sobretudo no que diz respeito à Educação Especial e à tremenda exigência associada ao seu trabalho e à bagagem conceptual e humanista subjacente. O que pressupõe uma formação multifacetada, que não se limita às competências académicas da área… O que, em meu entender, deveria levar o legislador a pensar duas vezes antes, por exemplo, de desvalorizar, para efeitos de progressão na carreira docente, um doutoramento realizado no âmbito da História. Afinal, esta disciplina, que, infelizmente, continua a ser relegada à quase inexistência nas escolas públicas nacionais, em detrimento de emergentes áreas esotéricas, poderia e deveria assumir um papel decisivo na construção de uma sociedade inclusiva…

A inclusão efectiva de todas as crianças e jovens exige que as escolas sejam dotadas de recursos, bem como de um conjunto de múltiplas respostas educativas, que vão ao encontro da especificidade de cada aluno, no que diz respeito aos seus interesses, pontos fortes e fragilidades/problemáticas. O que, desde logo, pressupõe uma efectiva redução do número de alunos por turma (12 seria, muito provavelmente, o número ideal). Nesta sequência, seria interessante avaliar até que ponto a publicação/implementação do decreto-lei 54/2018 foi efectivamente acompanhada, nas escolas de Portugal Continental, por esse investimento em recursos…

A ciência faz-nos falta. A obra que inspira o presente artigo deveria ser objecto de estudo atento, por parte de todos os profissionais da Educação, mas também por todos aqueles que, tantas vezes fechados ao longo de décadas nos seus gabinetes, almejam transformar o sistema educativo apenas e só com o poder dos seus papéis. Parece-me que grande parte dos problemas que continuam a afectar as escolas públicas nacionais radicam nesta profunda separação entre aqueles que conhecem a realidade e aqueles que permanecem enclausurados na sua bolha.

Em 2018, pouco depois da publicação do DL 54, redigi um artigo intitulado “Os pais da exclusão: o choque de civilizações”, no qual, hoje, terei de reconhecer alguns erros de análise, motivados também pelo facto de escrever em cima dos acontecimentos (mea culpa: um dos exemplos claros reside no modo como, à época, não compreendi o alcance que o legislador pretendeu imprimir ao abrangente, mas, reconheça-se, pouco claro conceito de “Centro de Apoio à Aprendizagem”). Todavia, 4 anos depois, mantenho a principal preocupação da época: “Os admiráveis mundos novos acabam quase sempre por recuperar o lado mais negro da História. Uma das grandes dificuldades em identificá-los é que na actualidade aparecem travestidos com palavras de civilização, caso da inclusão…”. Concretizando com um exemplo prático: a tendência actual, sustentada pelo DL 54/2018, de investir a todo o custo em conteúdos académicos e em acabar de supetão, como num simples acto de magia burocrática, com todas as categorizações, leva-nos, por vezes, a excluir alunos que, atendendo às suas especificidades, necessitam sobretudo de investir num “Currículo do Quotidiano” (Nuno Lobo Antunes et al., p. 85), que verdadeiramente os ajude a conquistar a autonomia, entre outras ferramentas essenciais para o seu futuro. Espero que a Região Autónoma dos Açores nunca perca de vista esse objectivo e que continue a promover efectivas respostas alternativas que vão ao encontro das múltiplas necessidades dos alunos.

 

 

 

 

Autor: Renato Nunes

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